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13-09-2005

Nós (A)Pagamos os Fogos


“Crónicas de Lisboa”

Nasci e vivi numa aldeia beirã, até aos meus doze anos e início da década de sessenta, e não me lembro de ter presenciado qualquer incêndio florestal naqueles campos e na imensa mancha verde em redor daquelas aldeias. Dos pinhais extraíam-se, naquela época, diversos produtos e sub produtos que faziam parte do ecossistema e da economia rural daquelas gentes, pelo que estes se apresentavam limpos, cuidados e eram vigiados, face à sua importante fonte de riqueza e mesmo de vital subsistência para os agricultores e aldeões daquele tempo.

Entretanto, aconteceram muitas alterações no mundo rural, na sociedade e na economia portuguesa, pelo que a nossa floresta e muitos campos que, no passado, foram campos de cultivo, apresentam, hoje, um estado de abandono e praticamente de mono produto, isto é, apenas se extrai a madeira.

Pelas alterações operadas, e por muitas outras razões que têm vindo a público, os incêndios florestais têm-se multiplicado, ano após ano, surpreendendo-nos como ainda há floresta para arder, neste país tão martirizado pelas acções do Demo ou dos filhos dele. O tema “fogos”, passou agora, e não apenas no Verão, como foi o paradoxo de há dois anos um violento incêndio no Vale do Vouga ter sido apagado com um nevão de Inverno, a fazer parte do nosso quotidiano, convertendo-se no principal assunto da época estival, ou como se diz na “silly season” dando “trabalho” a muita gente, incluindo a imprensa, sem esquecer os reflexos nos “medias” estrangeiros.

Por exemplo, os alemães manifestaram grande surpresa por nós, portugueses, aceitarmos os fogos, qual calamidade lusitana, naturalmente, como se de uma telenovela se tratasse, e revelarmos uma total incapacidade de resolvermos, ano após ano, este drama que delapida uma das nossas principais riquezas, deixando-nos, cada vez, mais pobres. A imprensa tem feito eco de muitas notícias, detecção de pirómanos, opiniões de “especialistas” e de outros técnicos e cidadãos e também escrevendo sobre a suspeição dos “negócios dos fogos”, embora, até hoje, ninguém tenha avançado com acusações directas, por falta de provas. Mas será, por exemplo, que o trabalho das autoridades policiais (GNR, PSP, GF e, principalmente da PJ) de nada sirva, para encontrar o fia à meada deste que pode ser um imenso polvo, mesmo que com “raia miúda” (pirómanos mentalmente desequilibrados) à mistura?

Há muitos anos que os diagnósticos têm vindo a ser efectuados, mas, passado o Verão, logo o assunto é esquecido, por todos, até à época seguinte (choca-me ouvir falar em “época do fogos”, como se fala da época balnear ou do futebol). A maioria dos proprietários dos pinhais e dos campos nem a erva e o mato limpa, que, por vezes, lhes crescem até à porta das casas ou estas são construídas mesmo em plena mata, pelo que o fogo destrói também este tipo de bens, em aldeias, vilas e cidades (veja-se o caso de Coimbra) ou povoados isolados, nas matas e nos campos.

Os demais agentes, com responsabilidades na matéria, fazem o mesmo e, depois, ficam à espera que seja o Estado o seu protector e o seu indemnizador, como se este fosse o único responsável pelos fogos que ocorrem no país. Tudo é exigido ao Estado, mesmo que haja crime, negligência ou desleixo nas causas e nas consequências dos fogos, bem como na ineficiência, e cujos efeitos directos lhes conhecemos as perdas, mas cujos efeitos ecológicos ainda estão por medir, no futuro próximo e a longo prazo.

Caminharemos, por este andar, para a desertificação do nosso território continental, empobrecendo-nos, ainda mais, mas também piorando a nossa qualidade de vida? Mas quem é o Estado? Somos todos nós e, por isso, os fogos que não prevenimos e não apagamos, acabaremos por pagar, todos nós, dado que a factura, directa, da “indústria dos fogos” é, cada vez mais alta, porque a ineficiência também vai crescendo. Por exemplo, o relatório dos bombeiros chilenos, entregue ao respectivo ministro, aponta muitas fragilidades da nossa “máquina do combate aos fogos”.

Aqueles técnicos questionam a eficácia dos aviões no combate aos fogos, quando estes já atingiram determinado estado de desenvolvimento e, como sabemos, esta “força de combate” custa milhões de euros ao erário público, melhor dizendo, aos nossos bolsos. Fica bem claro que não possuo qualquer propriedade agrícola, como muitos milhões de portugueses, ou qualquer metro quadrado de pinhal, mas, como cidadão e contribuinte, tenho que pagar os custos, elevados, duma “máquina” que nos consome elevados recursos que nos fazem falta noutras áreas e, mais grave ainda, vemos que os euros “ardem” com a mesma velocidade com que o fogo devora tudo o que lhe surge pela frente, se não lhe tiverem sido criadas barreiras, naturais, artificiais e humanas, com qualquer eficiência.

Em vez de apagarmos (melhor fora que a prevenção fosse a principal preocupação, antes e sempre), acabamos por pagar o custo dos fogos, mesmo que tenhamos feito como Pilatos. Aliás, é frequente vermos “mirones” a assistirem, impávida e serenamente, ao “espectáculo dos fogos”, como quem diz, “deixa arder, porque isto não é meu”. Onde está a solidariedade entre as pessoas como se via há décadas atrás, sempre que eclodia um fogo no pinhal do vizinho?

Fica-se à espera dos bombeiros para que estes apaguem os fogos e, depois, do Estado, para pagar os custos, as perdas provocadas e distribuir subsídios. Alguém já escreveu que: “quanto mais dinheiro o Estado afecta aos fogos, mais estes crescem”. Surrealismo? Tentei que, durante a “época dos fogos”, me desligar do assunto, para não me “revoltar” com este estado de coisas e afectar a minha sensibilidade e saúde. Mas, muitas vezes, me apeteceu gritar: BASTA. Obviamente, compete ao Estado (Governo e outras entidades, mas também a todos nós) criar condições de prevenção e de combate a esta calamidade que nos atinge a todos, mesmo que seja apenas como “pagantes” que somos, quase todos. Os fogos são a nossa vergonha e a nossa perdição, porque são reveladores desta nossa maneira de (não) resolver os problemas que, ainda por cima, não dão notoriedade. Onde estão os grandes técnicos da matéria e a liderança?

O país, excepto os “beneficiários”, agradecem encarecidamente, bem como os nossos vindouros, sob pena de lhes legarmos um deserto paisagístico e um país, ainda, mais pobre. Ninguém tem esse direito e todos temos o dever de preservar o nosso património, porque a Terra é um bem colectivo, mesmo que as suas “células” (propriedades) tenham donos.

P.S.- Não consigo observar, via TV e outros medias, as imagens dantescas das chamas e os dramas de tanta gente, principalmente dos mais pobres e desprotegidos, que perderam tudo o que tinham e ficam na miséria material e anímica. Não me surpreende que alguns queiram mesmo imolar-se no fogo, violentados e espoliados que foram por um inimigo tão poderoso - o fogo.

Serafim Marques*
*Economista


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