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19-08-2005

Geração bairradina de barbeiros não se renova


Bairrada

Contam-se por uma mão os barbeiros da região da Bairrada. Quem ainda sobrevive desta profissão não esquece o tempo em que o cabelo era cortado “à garçonne” e “à inglesa”. A nova geração é mais exigente e as barbearias já não satisfazem os gostos mais requintados. “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”.

“As mães de agora, quando vão aos cabeleireiros, levam o menino e é lá que ele corta o cabelo. O menino vai crescendo habituado à cabeleireira e, por natureza, sente-se afastado do barbeiro”. Quem o afirma é António Alves do Val que ainda é “do tempo dos vinténs e dos reis”. Tem 80 anos e desde 1975 que se dedica à arte de barbeiro em Ancas. Os anos passam mas António ainda se lembra do tempo em que as crianças iam à sua barbearia, acompanhadas pelo chefe de família. Agora, “a situação mudou e esta profissão está cada vez mais nas mãos das senhoras. Daqui a uns anos, já não há barbeiros, é só cabeleireiras”.

“Quando saía da escola ia cortar o cabelo aos miuditos”

António Alves nunca conheceu outra profissão. Começou a aprender este ofício desde “garoto” com a sua irmã mais velha e o seu cunhado que tinha um cabeleireiro. “Quando saía da escola, ia cortar o cabelo aos miuditos”. Esteve 28 anos em Angola e lá também exercia a mesma profissão. O espírito de aventura impulsionou-o a partir para além fronteiras. “Foi uma época muito marcada pela imigração, principalmente para as colónias”, refere António, acrescentando que “lá a vida era muito melhor, havia mais abundância”.

“Não guardo feriados nem dias santos, estou sempre aqui”. António Alves do Val divide o seu dia-a-dia entre o Centro de Dia de Sangalhos e a barbearia em Ancas. Assim como aprendeu vendo os outros. Ao longo do seu percurso profissional, foi ensinando a vários jovens este ofício. “O último que eu ensinei ainda pertencia à minha família. Os pais pediram-me para eu ensinar e eu ensinei”. E assim foi. O aprendiz depressa se inteirou do assunto e, em pouco tempo, já era barbeiro. Nesta altura, António já estava no Lar de Idosos de Sangalhos e, como os anos já pesavam, decidiu dar todo o material de barbeiro que tinha ao seu familiar. “Fui eu que lhe montei a barbearia na casa dele”, refere António. “Por ironia do destino, ele morreu num acidente e eu, que já tinha desistido, voltei novamente”.

Clientela simples e preço modesto

António Alves do Val já viu passar muitos cabelos pelas suas mãos. Em média, atende cerca de 20 clientes por dia. “Há uns anos atrás, o cliente estava à espera que fosse festa ou fim do mês para receber o vencimento e vir ao barbeiro. Hoje, felizmente, temos outras condições”.

O primeiro corte de cabelo que fez rendeu-lhe 10 tostões e a barba três tostões. Actualmente, por um corte de cabelo pede um euro e meio ao cliente e 1 euro é quanto leva por fazer a barba. “A clientela aqui é mais modesta do que seleccionada”. Tendo em conta que a casa e os clientes são simples, “os preços estão adequados e também são modestos”.

Este barbeiro considera que o preço é apenas um valor simbólico, mas “também não faria sentido não levar nada”.

A mobília da barbearia foi comprada em Coimbra. Pertencia a uma outra barbearia. Em 1976, “custou-me 18 contos e quinhentos escudos”. A cadeira, que “já era em quarta ou quinta mão, não faço ideia”, é o que mais se destaca neste espaço. António ainda dá uso à navalha e ao assentador que serve para a afiar. Quando começou a trabalhar, os gostos eram outros. As mulheres usavam o cabelo “à garçonne” (pescoço rapado) e os homens “à inglesa” (cabelo quase rapado).

António Alves não se pode queixar de ter pouca clientela mas a maioria já é de longa data. Calma, simpatia e simplicidade são características que o definem e que podem explicar a longevidade dos clientes.

Manuel Barros Moreira, de Paredes do Bairro, é um dos seus clientes. “Há mais de 20 anos que venho aqui”. Nunca foi a um cabeleireiro e não pretende mudar de barbeiro. Quando chega à barbearia nem precisa de dizer o que quer, pois António Alves já sabe. O baixo preço compensa esta ida até Ancas, mas o principal motivo que leva Manuel Moreira até aqui é “a amizade e o convívio”.

Joaquim Marques da Silva, de 77 anos, também vai com frequência à barbearia de António Alves. É da Mamarrosa mas é em Ancas que corta o cabelo. Sempre usou o mesmo corte de cabelo e nunca entrou num cabeleireiro. De três em três semanas, faz uma viagem até Ancas, à barbearia de António Alves. É seu cliente há mais de 30 anos e “nunca mudei porque gosto de aqui vir, principalmente pela amizade e confiança”.

Tal como António Alves, José Barreira não conheceu outra profissão. É o proprietário da barbearia da Malaposta, “já aqui estou há 34 anos”. Em criança, “de manhã, andava na escola e à tarde ia para a barbearia de Famalicão. Fazia lá os deveres e ao mesmo tempo ía aprendendo”. Também trabalhou em Mogofores mas aos 16 anos “vim para aqui e aqui estou”. Comprou esta barbearia ao seu antigo patrão e as cadeiras, que sobem e descem, ainda são as mesmas.

“O barbeiro trabalha à antiga, só com a tesoura e o pente”

“Gosto imenso desta profissão. Se fosse mais novo, até poderia ir mais além. Deixava de ser barbeiro e ia para cabeleireiro”. José Barreira estudou até à antiga quarta classe, mas, se fosse hoje, não hesitaria em prosseguir mais algum tempo os seus estudos. “O barbeiro trabalha à antiga, só com a tesoura e o pente. A cabeleireira trabalha também com os dedos e sabe bem pentear, porque estudou para isso”. José Barreira dedica-se a esta arte desde os 15 anos, “tenho o curso da experiência”.

Aos 52 anos, quando olha para trás, recorda que as barbearias já tiveram melhores dias. “Os clientes já são de certa idade e alguns vão morrendo. Eu tenho perdido muitos fregueses que vão falecendo e os novos preferem as cabeleireiras”. Tem clientes de há mais de 30 anos, que ainda eram do seu antigo patrão.

José Barreira já não utiliza a navalha, por questões de higiene, mas guarda-a com muito apreço. “Agora fazem-se poucas barbas porque as pessoas fazem-na em casa”. Com o passar dos anos, alguns hábitos foram-se alterando, mas outros continuam intactos. Exemplo disso é o ambiente familiar que se vive nesta barbearia. “Há pessoas que vêm cá só para conversar ou ler o jornal. Aqui sabem-se as novidades todas”.

A vida de José Barreira é calma, mas também cansativa e instável. Nem sempre os clientes aparecem, nem sempre pode fazer as refeições a horas certas e o horário é incerto. O dinheiro que ganha “dá para sobreviver”.

António Varandas é um dos clientes que aparece muitas vezes só para dar dois dedos de conversa. “Venho cá quase todas as semanas”. É de Espairo e é seu cliente há mais de quatro décadas. Habituou-se ao corte de José Barreira e “já não mudo. Também não sou nenhum gajo novo para andar aí com cortes especiais”. O convívio e a amizade são uma constante neste estabelecimento.

“Fui barbeiro toda a minha vida”

“Fui barbeiro toda a minha vida”, diz Egídio da Cruz, aos 83 anos. Nunca teve outra profissão e não houve possibilidade para andar na escola. Deixou este ofício há pouco tempo mas ainda sente saudades. Agora passa os dias no Lar Nossa Senhora do Ó em Aguim.

Aprendeu a arte com um barbeiro da Curia e começou a trabalhar aos dez anos. Foi barbeiro, por conta de outrem, em Anadia, em Oliveira do Bairro, em Aveiro e na Curia. “Aprendi muito com os meus patrões”. Fixou-se, depois, em Mogofores, comprou a barbearia que já existia e lá ficou durante 36 anos. “Ainda a Basílica dos padres não existia e eu já lá estava”. Todo o material de barbeiro, incluindo a cadeira, custou-lhe “três contos”. Nesta altura, dois tostões e meio era quanto cobrava por um corte de cabelo. Actualmente, já “levava um conto de reis”.

Egídio da Cruz era também conhecido como o “Barbeiro de Sevilha”. Não sabe explicar por que razão tinha esta alcunha mas achava-lhe graça. Tem dois filhos mas nenhum lhe seguiu as pisadas.

O cliente pagava “um copito”

“Lá em Mogofores éramos todos amigos. Gostei muito de trabalhar lá porque estávamos ali uns entretidos com os outros e o tempo passava depressa”. Egídio da Cruz fala com saudade dos 36 anos que passou em Mogofores como barbeiro. Quando o cliente já estava atendido, era costume e quase tradição este pagar “um copito”, no café em frente. “Às vezes, pagavam copos a mais”, refere o “Barbeiro de Sevilha” com um sorriso saudoso.

António Alves do Val, José Barreira e Egídio da Cruz são três dos poucos sobreviventes dedicados à arte de barbeiro. A concorrência estabelecida com os cabeleireiros é grande e a nova geração não se interessa por este ofício. Cada vez há mais cabeleireiros e, contrariamente, o número de barbearias tem vindo a diminuir com o passar dos anos.

Sílvia Torres


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