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30-04-2005

Sem Querer... Escrevi


Crónica da América

Sem Querer... Escrevi

Escrevo esta crónica, quase sem querer. É quinta-feira à noite, e eu disse ainda há pouco ao Manuel do PT que esta semana não haveria "Falas do Calado". Às vezes dá mesmo vontade de dar umas férias ao bestunto e à língua. Viemos da casa funerária, de ver alguém que por aqui andou, e por aqui deixou o rasto da sua passagem, e a quem, por sinal, ambos estivemos ligados por largos anos. Que o ponto final é sempre assim. O esquecimento.

Mas enquanto há vida, há esperança' e foi ela, essa força cósmica que nos impele, que me pôs em frente desta máquina prodigiosa que virou o mundo de baixo para cima. Na passagem calma e contemplativa a que se reduzem os meus dias actuais, pequenas coisas muito significam para mim. E uma dessas coisas importantes é a terra escura do meu quintal. Com ela me identifico e com ela falo sempre que estou de maré. É um pedaço de chão, tão misterioso como o universo. Nela palpita a vida eterna que eu não tenho. E não estou a fazer literatura. Esta convicção é em mim um ponto de fé, gerado no fundo do meu subconsciente. Não sei explicar esta atracção, que julgareis, talvez, exagerada.

Mas, ia dizendo, irmãos, que os mistérios da morte e da vida andam entrelaçados. E neste dealbar de Primavera, eu procuro afinar as cordas da sensibilidade pelo diapasão eólico deste ventinho fresco, cheio de promessas anunciadoras. Remexi ontem na crosta ainda fria deste chão que me calhou em sorte, pois estou ansioso para começar a tarefa que me propus. Eu sei que é ainda cedo para lhe lançar no ventre o embrião milagroso das sementes que aguardam, dentro dos saquinhos, a hora da fecundação. Mas ela vai chegar.

Maio está à porta, cheio de promessas e de milagres. E não há milagre maior do que ver uma sementinha minúscula transformar-se numa couve tronchuda, num pepino fresco, ou numa alface repolhuda, pedindo o vinagre e o azeite perfumado das oliveiras lusitanas e o néctar das cepas da Bairrada, do Douro ou do Alentejo. Que eu, "em verdade vos digo", sou um bicho da terra, filho e irmão desse prodígio que nos cria, alimenta e consome.

Parafraseando o poeta Jean Valrey, diria... "Precisa a noite de um astro, a minha casa de um tecto, a minha barca de um mastro? Eu concluiria... Para fim de ladainha, preciso apenas de sol, e desta terra que é minha. E quem se dá por feliz com tão pouco, decerto não merece mais. E já é muito. Aquele português que jaz no Cemitério Rural, "mesmo à beira do caminho, onde não há sepultura... teve apenas como prémio, sete palmos de terra dura".

Meus amigos, estas são as falas da crónica que não queria escrever...

... Mas, já que estou com a mão na massa, direi que o meu amigo das caganitas "orgânicas" de coelho, que o ano passado encheram de verdura o meu quintal, disse-me há dias que este ano não haveria adubo. Disse ele que as orgânicas bolinhas da sua coelheira têm de ser doseadas, e que não é bom repetir a dose todos os anos. Eu aceitei o conselho e este ano a minha terra vai contentar-se com outras comidas menos fortes. Se o jejum é bom para as pessoas, também não deixará de ser bom para a terra do meu quintal. É lógico e aceitável.

E se a Maria das Dores, a minha patrícia bairradina, me está ouvindo, que não esqueça uns pés daquelas suas couves do ano passado. Couve penca portuguesa, como eu jamais vi! Apenas um exemplar, encheu-me a mala do carro, e ainda ficou uma folha de fora. Dessas couves é que nem as caganitas dos coelhos do meu amigo foram capazes de criar. Não sei se a minha amiga fez chi-chi nas covas quando as plantou, o que é certo que milagres daqueles nunca antes eu vi.

E que mais querem que vos diga? O repertório, por hoje, está esgotado. E já que vem a talhe de foice - como se diz na Bairrada, onde as foices antigamente eram uma ferramenta muito útil, mas hoje, como o alvião do Pico, ja ninguém usa - ia eu dizendo que vou terminar estas falas, com o "Padre Nosso do Cavador". Uns versinhos que desceram sobre a minha cabeça quando dormia, acreditam? Pois é verdade, e rezam assim:

Padre Nosso, Nosso Padre

Minha alma alumia

E dá-nos por caridade

O pão nosso de cada dia.

Bendito seja louvado

O Filho e a mãe Maria

A fresca relva do prado

E o sol que nos alumia.

Ave-Maria não voa

Nem precisa de alimento

Só nos quer e abençoa

E alivia o sofrimento.

E a terminar este evento

Aqui fica o meu louvor

Inspiração dum momento

Do poeta cavador!


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