DESESPERO CULTURAL?

Provoca algum choque este título-pergunta. Não vem directamente do contexto das dificuldades do nosso país, onde fazer subsistir a cultura que nos oferece identidade em espaços comuns, é missão heróica. Não faltam casos onde este desespero da subsistência de grandiosos e históricos projectos culturais sentem os seus dias ameaçados. São os princípios de prioridade e de gestão da Gulbenkian que fazem tremer o precioso Ballet com 40 anos; são as inúmeras Associações culturais e recreativas entre nós que subsistem a muito custo e chegaram ao presente com a inesgotável boa vontade do meritório núcleo duro de cidadãos; é a (felizmente) salva Filarmonia das Beiras que, fruto de reconhecido apreciável empenho da actual liderança, continuará a exercer tão nobre missão cultural.

Mas, a interrogação do título destas ideias vai bem mais longe. Em escrito do jornal Público (de Domingo, 17 de Julho), Ralf Dahrendorf (Membro da Câmara dos Lordes Britânica, antigo Reitor da London School of Economics), fazia referência a obra escrita, há alguns anos, pelo historiador Fritz Stern, cujo título era “A política do desespero cultural”.

No seu escrito, o Professor Ralf faz uma breve viagem pelas ideias da cultura social e política europeia. Apresenta os diversos modelos de concepção e visão da sociedade, desde a aceitação sedutora dos modelos economicistas de desigualdades galopantes até à sua total rejeição, que geram concepções anti-globalização e novos-nacionalismos.

Faz-nos pensar, acima das visões de papel do estado ou de modelo económico. Por um lado, talvez uma política de desespero cultural poderia significar que, diante de uma geração que nasce num miraculoso modelo tecnológico (e que não assistiu às suas transformações) um novo paradigma social vai-se instaurando, em que as pessoas aproximam-se mais das máquinas que dos seus semelhantes humanos. É no mundo novo das tecnologias e nos povos por elas comandados que, paradoxalmente, o tempo menos chega para a relação humana! Desesperante realidade. Por outro lado, o modelo cultural criado pela global TV, que contém tanto de maravilhoso, informação e lúdico saudável, quanto cheio de pressões para todos os quadrantes da vida social, apresenta-se, predominantemente, com um estilo promotor de “vidas de entretenimento”, para que tudo se leve a brincar?num cada vez mais oco, inculto, num paradigma demolidor e dissuasor do resto das referências culturais que construíram uma civilização humanística. Estará a cultura em perigo? O que está em causa? Vejamos: em que “pano de fundo” estão a ser educadas as crianças e os adolescentes de hoje? Que lugar para o “sério” na sua educação conseguem ter os seus pais e família? Que lugar há para o “donde vimos” para mais sabermos “para onde vamos”? Quantas ‘coisas’ fundamentais criaram fortes alicerces humanos para a vida que hoje são consideradas perdas de tempo?!...

A noção actual de referências, valores e princípios, está a “fugir a sete pés”, e, sem darmos por isso. Muita gente, a lembrar o passado, sente a nostalgia de “algo”? Por vezes, vemos filhos, crianças quase a maltratar os pais que, meio ausentes da sua função, acabam por não ter a saudável e importante autoridade paterna, capaz de ser ouvido pelo seu próprio filho que lhe foge? E, sendo importante fazer o diagnóstico do actual modelo de relação pais-filhos, o certo é que ser criança moderna já é “reclamar”! E a mensagem não passa, e se nem a humana quanto mais ainda a noção do simbólico, poesia, das essenciais verdades invisíveis ao projecto de vida e de felicidade. (Invisíveis, sim! Ainda ninguém inventou a fórmula matemática do amor ou do sentido da vida? Sem desenvolvermos o sentido da nossa esperança - algo que não dá lucro líquido - todo o caminho da vida será muito mais pesado!)

Mas o mais interessante é que tudo corre e ocorre naquele silêncio das mutações culturais, no tornar-se moda, em “não pensar em coisas sérias - ditas de - chatas”, em que a pergunta sobre o futuro é cada vez mais ausente.

Desespero cultural?... As sociedades têm o seu ritmo, os seus fins e princípios de épocas. De muitas leituras do “não” Francês e Holandês a este modelo europeu, também se poderá vislumbrar a ansiedade e o labirinto desta busca de mais clareza cultural para um tempo novo, afinal a procura de como nos definimos, para além de um “modelo social europeu” que - como diz Ralf Dahrendorf - ninguém ainda sabe muito bem em que consiste.

Tratar-se-á de um tempo de mudança, não de desespero como se estivéssemos no fim. (?) É o tempo da afirmação clara dos contrastes, da minoria que ganha peso na indiferença colectiva, dos programas isolados com dificuldades de chegar à síntese. Talvez como a grande família tipo numa capital europeia que, na busca do programa de televisão de consenso para todos, onde fosse possível conversar?, acaba por desistir e comprar uma TV para cada um ver o que quer. Este é o tempo em que quanto mais se fala mais falta. Nunca se estudou tanto a educação, é quando ela mais falta; é a época da rejeição social do purificado e celebrado fenómeno religioso e é quando as procuras múltiplas da religiosidade aí estão para compreender as horas amargas da vida ou então nas mega-leituras fantásticas com feitiçarias e mágicos misticismos perigosos; nunca a noção estudada e comentada de política económica foi tão global entre nós, e ao mesmo tempo a dificuldade da sua gestão real tão evidente.

Como seremos (que, como, e com que símbolos comunicaremos) daqui a uma geração? Não sabemos. Mas, para aí nos (re)conhecermos como comunidade que tem “memória”, temos de preparar melhor o futuro e sentir as dificuldades presentes como desafios à reinvenção. Por outras palavras, continuar a ampliar os horizontes que sabem aliar a inovação à tradição. Se assim não for, não iremos lá! Sem “pontes”, o desespero (cultural) fará de nós no futuro uma sociedade irreconhecível na sua identidade e irreconciliável com a sua história. É, por isso, especialmente em tempos de globalização apressada de tudo, que é importante sabermos mais donde vimos!

Alexandre Cruz*
*Centro Universitário de Fé e Cultura de Aveiro
Diário de Aveiro



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